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OS ATELIÊS DE NISE DA SILVEIRA , A PSICOSE E O FLÂNEUR

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OS ATELIÊS DE NISE DA SILVEIRA , A PSICOSE E O FLÂNEUR

Liliana Liviano Wahba

21/11/2022

 

OS ATELIÊS DE NISE DA SILVEIRA , A PSICOSE E O FLÂNEUR

A atividade criativa é poderoso fermento para reestruturar a psique. Nos ateliês de Nise da Silveira distintas modalidades artísticas eram exercidas pelos pacientes. “Emoção de lidar”, dizia Nise, um trabalho imerso em pathos, o sofrimento que também é paixão.

O terapeuta dos ateliês, tal qual um flâneur curioso e atento a minúcias e a grandezas, em circuito divagativo, é convidado e convida a perambular nas paisagens que se abrem nessa flanerie psíquica. Walter Benjamin, a partir de Baudelaire, vê no flâneur um habitante da cidade, uma morada que se contrapõe àquela convencional, na qual residem pessoas, animais, fantasmas, imagens: o flâneur é o sacerdote do genius loci. Nas ruas – seu lugar -, o flâneur absorve tudo como o poeta, interioriza cheiros, barulhos, poeiras, vitrines, espectros refletidos em vidros. A rua aparece ora como paisagem ora como aposento.

Baudelaire o descreve como observador independente, imparcial e apaixonado, que anseia pelo movimento, pelo fugidio e infinito; se vê no centro do mundo e oculto dele.

“Pode-se compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão, [na qual se encontra] a um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida”. (Baudelaire, 2006, p. 854).

A multidão, no trabalho com psicóticos seria equivalente a um inconsciente coletivo onde pululam personagens, transitam múltiplas facetas de cada ser, duplicidades cindidas da consciência na psicose, delírios nos quais se mergulha ao lado do paciente. A descrição poética, advertimos, não subtrai a dor e o sofrimento inerentes ao adoecer psicótico. Esta dor é também compartilhada, respeitada, buscando redirecioná-la no fluxo do existir.

A imaginação se impõe à percepção, de acordo com Bachelard (2008), nos liberta da mera percepção e cria outras que ultrapassam e “cantam” a realidade. E ele pergunta: como o acontecimento singular e efêmero constituído pela aparição de uma imagem poética singular pode reagir, sem preparação prévia, sobre outras almas, em outras consciências, em outros corações, ultrapassando o senso comum, os pensamentos sábios imobilizados.

O processo de individuação, no dizer de Jung, impregnado de imaginário, é a experiência com a própria vida, as luzes e sombras do que a realidade contingencial nos propõe e as luminescências e assombramentos de nossa psique; alguns encontram suaves declives, outros abismos, todos em experiência, todos compartilhando a imensidão humana e seus limites.

Para aqueles que estão na fronteira da capacidade psíquica de conter suas experiências, um testemunho do caminhar se faz necessário. A casa foi perdida, casa esta que concreta e psiquicamente pode estar em ruínas e se refaz em instantes de fantasia renascente, o momento, a pulsação, soterrados nos escombros do que ruiu, um compasso de vida desejante, esquecida, talvez à espera de ser evocada.

Tão longe da casa de origem habitável, aconchego de memórias e de evocações de futuro, de preenchimentos afetivos e da imaginação em Bachelard, aquela que tem a maior potência de integração para os pensamentos, lembranças e sonhos dos homens, aquela que garante continuidade e evita a dispersão de si. Há cacos espalhados que podem recompor janelas, assim gostaríamos que fosse. O terapeuta absorve e testemunha percursos, de modo envolvente, respeitoso, elucidativo e imaginativo, um envolvimento de terapeuta-paciente com reverberações e amplificações via mitos e símbolos.

As histórias se interpenetram, o paciente, suas emoções, fantasias, delírios, a ruptura de um mundo estilhaçado, parado no tempo da inexistência, receoso de se aventurar, ferido e acuado e, sobretudo, invisível na sua individualidade; é um psicótico, a alma foi retirada, resta um diagnóstico que o aprisiona ainda mais cerradamente porque não lhe confere sentido de existir. E, entretanto, existe; com seus sonhos fracassados, com seu futuro embaçado, com seu tempo congelado e espaço estreito, não só existe como anseia ser espelhado no seu existir, ser integrado à humanidade à qual já não sabe se pertence, os amigos afastados, a família enredada, um ou outro passante lhe confere um olhar de relance, mas ele se retrai, não consegue reconhecer o outro, pois não se reconhece a si mesmo.

É no olhar da face do outro que identificamos nossa humanidade e alteridade, segundo Lévinas. Nos ateliês se materializa esse olhar, atraindo para o convívio e a partilha, tênue, quase impalpável, mas presente, contrapondo-se aos olhares espectrais do reino das sombras.

Esse olhar, junto ao gesto estendido de acolhimento, sem demanda, nem sequer de alguma resposta cabível, restaura, vagarosa e continuamente, as quebras e fissuras. Almeja-se recompor, ser bem sucedido, trazer o outro ao mundo habitável, conceber que há a possibilidade de constituir um espaço junto, de contar uma história de modo inserido, ao invés de expelido. Quando isso acontece sopra a bem aventurança, quando não, o ânimo esmorece e, ainda assim, permanece o tremular de uma promessa a desabrochar.

O terapeuta sonha desperto em busca desses acordes, não se ilude diante da magnitude do acontecer, sofre com a estagnação sabendo que a cronificação pode ser um desenlace terrível e implacável; com pesar, precisa aceitar, entretanto, não aceita desumanizar o outro, retirar-lhe a dignidade e a expressão peculiar, significante, ainda que não ajustável, ainda que não integrada à unidade psíquica. Busca amainar a dor torturante e dilaceradora, o intolerável, sem julgamentos de resposta adequada. O terapeuta segue meandros, reevoca em proximidade, auxilia a reestabelecer um fluxo psíquico vital abafado, perdido, com votos de reencontrá-lo.

Italo Calvino descreve a cidade de Valdrada construída à beira de um lago, que faz com que o viajante se depare com duas cidades, uma perpendicular sobre o lago e outra refletida de cabeça para baixo onde nem tudo que tem valor acima do espelho se valoriza depois de refletido. Ambas as cidades, ainda que não se amem, vivem uma para a outra.

Referências

Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Baudelaire, Charles. O pintor da vida moderna. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2006.