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¨Arte, análise e os mestres. Compreender e perdoar. ¨

miniatura crônicas SBPA

¨Arte, análise e os mestres. Compreender e perdoar. ¨

Brenda Gottlieb

Analista da SBPA

brendago2009@hotmail.com

Nunca me atrevi a imaginar-me artista. Sempre entendi como pretensão de minha parte ser capaz de produzir algo que a mim tocava e toca tão profundamente, a arte.

A inveja e a admiração que sinto pelos artistas é e sempre foram minimizadas pelo prazer e pela emoção que a arte produz em mim.

É no fazer analítico a minha, a nossa, analistas, expressão artística.

Sobre “O Processo”.

Um dos conceitos mais instigantes da Psicologia Analítica para mim é o do caráter essencialmente criativo da psique. A busca dos aspectos criativos em núcleos defensivos, rastreando os sinais prospectivos contidos nos sintomas, nos sonhos e nos conflitos, torna o fazer analítico um jogo instigante de descobertas e revelações próprio de grandes livros de suspense, com surpresas transformadoras tanto para analistas como para analisandos.

Há uma técnica descrita por Freud como psicobiografia que consiste em um método de pesquisa e intervenção que objetiva a aplicação de uma teoria psicológica geral ou específica, aplicada ao estudo da vida de um indivíduo que merece ter sua vida ou obra narrada e descrita, enfatizando através de sua obra, aspectos que o indivíduo viveu.

Em junho de 1910, Jung recebeu de Freud “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância,” livro fundador de toda psicanálise da arte. Apesar de todo o entusiasmo com que esta obra de Freud foi recebida por Jung em “O espirito na arte e na ciência” em 1922, Jung afirma: “Quando uma obra de arte é interpretada da mesma forma como uma neurose, de duas uma, ou a obra de arte é uma neurose ou a neurose é uma obra de arte”

‘A obra de arte não é um ser humano, mas algo supra pessoal. É uma coisa e não uma personalidade e por isto não pode ser julgada por um critério pessoal”.  Em o espirito na arte e na ciência 1922.

Acrescenta que :“Arte é a expressão mais pura que há para a demonstração do inconsciente de cada um. É a liberdade de expressão, é sensibilidade, criatividade, e vida” e logo em seguida complementa:  “a criação artística esta entrelaçada com a vida pessoal do artista, por um lado, e por outro, se projeta para fora desse entrelaçamento”.

Olívio Tavares de Araújo, renomado crítico de arte e artista ele próprio, escreveu: a “obra de arte” transcende o indivíduo que a cria, mas toda obra nasce de um fazer individual que implica obrigatoriamente graus variáveis de temperamento e vivência. Não há como retirar dela o indivíduo. O Coletivo e o social não entram na obra por força de magia.

PICASSO

Pablo Picasso(1881-1973) pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo, foi considerado um dos maiores e mais influentes artistas do século XX , tendo sido um dos grandes responsáveis por desenvolvimentos revolucionários nas artes plásticas.

Suas obras cubistas As Senhoritas d’Avignon” (1907) e “Guernica” (1937), são seguramente seus trabalhos mais famosos.

Jung, logo após uma exposição de obras de Picasso, em Zurich, em 1932, publica uma análise crítica sobre a exposição no jornal Neue Züricher Zeitung.

Picasso tinha 51 anos e Jung 57.

Neste artigo, Jung infere à Picasso, problemas psíquicos análogos aos de seus pacientes esquizofrênicos. Apesar de salientar que se referia apenas aos aspectos que se expressavam em seus trabalhos, esta crítica e interpretação de Jung sobre Picasso, caiu como uma bomba na intelectualidade da época.

Como podemos ver, é mais fácil criticar do que fazer.

Apesar de ter afirmado ser impossível interpretar um autor através de sua obra, neste ensaio foi exatamente o que fez. Gerou estardalhaço, gritaria e várias críticas (nosso mestre também sabia arrumar encrencas).

No artigo original, Jung fazia uma interpretação das pinturas de Picasso do ponto de vista da sua psicologia analítica, tal e qual ele fazia de seus pacientes. O uso de figuras fantásticas e deturpadas de Picasso sugeria, para Jung, que tais imagens brotavam do inconsciente e podiam ser caracterizadas como esquizoides, conforme seus conceitos.

Para os conhecedores da obra de Jung, sua referência ao processo de Picasso como sendo “Nekya”- a descida ao inferno- sabem da importância que ele atribui a esta fase do processo de individuação, como sendo uma jornada individual de cada ser que almeja um desenvolvimento espiritual e psicológico.

A Nekya era um ritual grego cuja pratica almejava a comunicação direta do submundo (mundo dos mortos) com a terra. Geralmente ocorriam em cavernas cujo interior não tinham fim e cujas entranhas eram invioláveis ou em tumbas de mortos.

Para Jung, a fase Nekya do processo de Individuação, foi descrita como uma introversão da consciência nos mais profundos recônditos do inconsciente. Ao contrário de ser uma queda nos abismos destrutivos da psique coletiva, como na esquizofrenia, trata-se para ele, de uma restauração da plenitude do ser humano através do resgate de conteúdos profundos. Distinguiu este processo de fortalecimento do processo de ruptura que ocorre numa psicose (esquizofrenia).

Mas não nos esqueçamos de que o termo Nekya na mitologia grega era associado a necromancia. Ela pertence à religião vodoo e é uma forma de magia negra praticada por bruxos e magos.

Pressionado pelas fortes reações que seu artigo gerou, em 1934 faz um adendo afirmando que não estava se referindo a Picasso como esquizofrênico, mas sim a traços esquizoides presentes em suas obras.

Tentou assim, emendar e esclarecer sua argumentação, apaziguando um pouco seus detratores.

“Enfim, quando me atrevo a falar sobre Picasso, é com a ressalva bem clara que o faço: nada tenho a questionar sobre sua arte, apenas falarei sobre a psicologia desta arte. Deixo, portanto o problema da estética para os críticos de arte, restringindo-me à psicologia que serve de base a este tipo de criatividade artística”.

Verdade não por inteira já que Jung, nesta época, deixava claro seu desconforto com a arte moderna, salientando a importância das imagens arquetípicas encontradas nas artes clássicas que antecederam a Arte Moderna

Vou discorrer um pouco sobre Picasso e sua vida por dois motivos: a vida e a obra dele são fascinantes, era um ser muito especial e, mencionar o que acontecia na sua vida e no mundo, naquela época, nos interessa como ilustração desta minha proposta.

Em 1932, ele estava há quatro anos numa relação com uma moça muito mais jovem do que ele. Ele a conheceu quando ela tinha 17 e ele 45, Marie Therese.( menor de idade).

Esta moça permaneceu na vida de Picasso durante muito tempo como sua amante e escrava sexual, segundo alguns biógrafos.

Picasso foi um ser apaixonado que transpôs para as telas seu fascínio pelas mulheres. Conquistou muitas, foi marido de sete, amante de várias, foi infiel e algumas vezes cruel.

Não raro suas mulheres passavam de deusas a monstros em seus quadros de acordo com a fase da paixão e do relacionamento.

A cada novo amor, novo rosto surgia em suas telas. Poucas sobreviveram ao fim dos relacionamentos, algumas morreram por doença, outras por suicídio.

“As obras de Picasso de durante a guerra são as mais terríveis, destroçando a figura feminina. É provável que os vapores tóxicos da relação amorosa que mantinha à época, tenham sido mais importantes sobre Picasso que os da própria guerra.” (Olívio Tavares de Araujo)

Talvez Olívio tenha razão em sua afirmação, talvez não. Como analistas sabemos muito bem a dificuldade de separarmos o individual do coletivo em vários dos conteúdos com os quais lidamos, Guernica que Picasso pintou em 1937, é um bom exemplo.

Uma história é sempre uma história, depende de quem a conta, em quais fatos se embasou, de quem a ouve, de quem a lê.

 IBERE CAMARGO

Não comparo os dois autores em termos de importância, mesmo porque, não tenho expertise para tal. Utilizo-me destas histórias como uma analista que através de um quebra cabeça, consegue um quadro. As pinturas, sonhos, biografias e escritos, vão desenhando e dando forma ao que procuro transmitir hoje.

As semelhanças e paralelos com o fazer analítico surgem assim como a elaboração desta “exposição”.

Iberê Camargo pintor, gravador, desenhista, escritor e professor, nasceu em 1914, em Restinga Seca, RS. Morreu em Porto Alegre em 1994, depois de quatro anos de luta contra um câncer de pulmão.

Artista amplamente reconhecido tanto em vida como após a morte como um dos grandes artistas de nosso tempo, Iberê Camargo tem uma trajetória existencial e pictórica marcantes.

Iberê até o episódio que narrarei a seguir, era um pintor essencialmente abstrato, expoente da arte expressionista da época. Após o incidente, a figura ressurge em sua obra, desesperada, às vezes sufocante, expressando com nitidez as dores, suas e do mundo.

  No texto de sua autoria, Gaveta dos Guardados Iberê sinaliza para a sua grande ferida, e tal qual um grande espelho nos revela sua dualidade. –“–falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim”.

O editor do livro Gaveta dos Guardados, Augusto Massi, relata a tragédia como tendo Iberê sofrido um ataque injustificado do engenheiro Sergio (32 anos), que após empurrar Sueli (27), sua jovem assistente, empurra o pintor, que acuado, saca sua arma e dispara dois tiros, matando o jovem. Foi absolvido sumariamente com a tese de legitima defesa.

Com perplexidade, nos perguntamos: Como um artista sensível, profundo, reconhecido e criativo, no auge do sucesso de sua carreira comete um ato tão violento?

Olívio, em seu texto “O olhar amoroso”, sobre Iberê, relata uma outra versão, de que Iberê, andando na rua, tenta apartar uma briga de casal. Ao ser empurrado pelo marido briguento, levanta-se, atira e mata o rapaz. “Por muitos anos depois do crime, costumava descrever-se como a vítima de uma fatalidade trágica” diz Olívio.

Um ou dois anos antes de sua morte, em uma conversa com Olívio, Iberê afirma: “Você pensa que é fácil viver com a consciência de que se matou um homem?”

Novamente nos deparamos com várias versões assim como nos consultórios o número de versões que temos de fatos, imagens, sonhos, fantasias é infindável. Um caleidoscópio de infinitas formas.

Tanto a arte como a análise exigem do sujeito uma alta capacidade de introversão aos mais recônditos cantos de nossa psique e alta resiliência para lidar com impulsos e forças arquetípicas. A possibilidade de elaboração a que o processo analítico se propõe é de ordem semelhante ao fazer artístico. Exige aptidão e capacidade de conscientização de sentimentos, sensações e forças, em parte conhecidas, em parte totalmente desconhecidas, -em parte admissíveis, em parte totalmente indesejáveis.

“O drama trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde â verdade mais intima que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo”.

Neste trecho, ambiguamente, Ibere revela consciência de seu pecado, sem, no entanto, deixar de projetá-lo.

“Para mim, arte e vida confundem-se”.

“Eu antes de iniciar viagem – o quadro- consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota preestabelecida e me leva a descobrir o novo quadro.”

Como analistas, temos a mesma lição… em mar aberto (no fazer analítico), o vento sopra e nossa tarefa é velejar e descobrir o novo que o processo enseja e contém. Neste momento, criamos em conjunto, novas possibilidades, novos olhares, novos rumos.

Às vezes à custa de tragédias, de dores e sofrimentos, mas nunca em vão.

Para nós, arte e vida devem se confundir.

Ambos os artistas, Picasso e Iberê, cada um à sua maneira, sinalizaram um dos grandes dramas do ser humano. Lidar com forças intensas destrutivas e agressivas.

Nós analistas, sabemos muito bem a dor e o sofrimento que o processo de transformação destes conteúdos exige, e é exatamente nesta intersecção que situo a arte da análise.

Picasso falava da guerra iminente e do sofrimento da mãe Terra, representada nestas mulheres oprimidas e adoradas ou abandonadas. Iberê, falava da solidão, da dificuldade de entender e processar impulsos agressivos, que ao contrário das orgias sexuais que tanto caracterizam este hemisfério, transformam-se em injustiças sociais.

É ai que reside um dos significados da arte- ela trabalha na educação do espirito da época, pois traz a tona o que o mundo mais necessita.

E é ai que reside o significado da analise enquanto “arte” – trabalhar na educação, no descortinar de novas formas de expressão, de novas possibilidades existenciais de cada um e de todos.

Ao entendermos processo analítico tal qual o processo criativo, encontramos a intersecção que buscamos entre o fazer analítico e a arte.   O que o processo analítico traz à tona não é somente o que o indivíduo necessita, mas se estivermos navegando de fato em alto mar, e sabendo velejar os ventos que a natureza demanda, contribuiremos com  o que o mundo requer.

O tema da violência, do feminino ferido, reprimido, da sombra individual e coletiva da agressividade, emerge na obra e vida destes dois grandes homens, destes dois grandes artistas.

Iberê pode ter sido uma vítima precoce e profética do que viria a seguir para nós, brasileiros e homens contemporâneos.

Suas obras, pós-trauma, refletem um ser atormentado, perdido.

Sabemos muito bem como analistas, que, tanto nós, quanto nossos analisandos vamos cruzar, neste processo, com conflitos e dramas que muitas vezes nos ferem, ou aos outros. Não há como de fato haver um aprofundamento tão intenso quanto a arte e a análise exigem, sem consequências às vezes belas e muitas vezes trágicas.

Individuação é a arte de viver, de criar-se como ser humano, e o viver criativo é uma forma de alcançar a realização mais profunda do ser. As imagens do inconsciente pessoal ou arquetípico, são apenas uma das linguagens simbólicas que o analista tem por dever entender e decifrar. Mas nada impede que além do mais, elas sejam harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, constituindo-se em verdadeiras obras de arte. Nossa meta como analistas e artistas do fazer analítico é buscar a humanização individual ou coletiva do imaginado.

Saber apreciar a obra, quer artística quer intelectual é resultado de grande esforço tanto de compreensão como de perdão.