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Quem é o mocinho da história

Quem é o mocinho da história

Quem é o mocinho da história?

Paulo, hoje homem feito e pai de família, relembrou uma história que parecia muito simples, mas foi tomando um vulto sério e profundo.
Assim, numa tarde de domingo, após almoço em família, uma conversa com ares nostálgicos tomou conta da sala enquanto todos apreciavam o café com biscoitinhos. Paulo recorda com os presentes  sua incursão aos cinemas na tenra idade de três ou quatro anos, que apesar de ter acontecido no século passado, faz pouco mais de vinte e cinco anos.

Quase todos os filmes naquela época eram legendados, e levá-lo ao cinema não era tarefa fácil. Paulo sentava-se confortavelmente no colo do adulto e pedia para que lesse absolutamente tudo que estava escrito – e, muitas vezes, reclamava da entonação dada. Não raro acontecia de ele ficar bravo, quando o leitor com a garganta seca e cansada surrupiava algumas palavras e até mesmo frases do contexto geral; nessas horas o menino dizia: “Você falou menos do que a pessoa do filme”.

Após boas risadas de todos e a confissão de alguns de que era muito chata mesmo aquela situação, alguém se lembrou da angústia do menino frente ao filme quando precisava saber quem era o vilão da história. Em filmes em que os personagens não se apresentavam com caracteres que denunciavam suas maldades ou bondades, o garoto ficava muito agitado querendo saber quem era do bem e quem era do mal. Assim que descobria quem era quem, ficava tranquilo e acompanhava o restante do filme.

Boas risadas novamente, algumas lembranças relatadas pelos mais velhos, algumas histórias pessoais parecidas com as dele.
Um pequeno silêncio. Parecia que todos haviam sido transportados para outro lugar, talvez para uma viagem no tempo, talvez para uma viagem interna, sabe-se lá.

Começo a falar da dificuldade das pessoas, em geral, em aceitar que existe um lado muito ruim e destruidor dentro de cada um. Como é complicado perceber-se mau em muitos momentos e como a destruição vem camuflada de uma crítica dita construtiva, muitas vezes.

Conversamos sobre isso, levando para os campos político, econômico, social.

Disse então ao Paulo que aquela aflição que tinha é a mesma de quando nos deparamos com sutilezas de bondade travestindo o mau, e vice-versa.  Bem disse Einstein que tudo é relativo, brinquei.

O rapaz, com sua habilidade, deslocou a conversa mais densa para um campo mais leve, provocando risadas ao fazer um autoelogio: “eu já era prodígio naquela época”.

A conversa caminhou para outros caminhos bem mais amenos e não menos interessantes.

Hora de ir embora, todos se despedem, agradecem o dia agradável e voltam aos seus destinos.

Final da tarde de domingo, período perfeito para se pensar na semana que se inicia, em projetos, compromissos e também para certa preguiça, afinal, o fim de semana é sempre mais curto do que se queria. Horinha chata, pensei.

Minha semana começou cheia de trabalho e compromissos. Uma semana boa e desafiadora se desenhava calmamente até aparecer um fato muito desagradável e difícil de contornar: a aberração da força e do poder para se atingir um ideal.

O poder da força ou a força do poder?

O governo resolve solucionar várias questões sérias de convivência e aceitação com uma cartilha sobre a questão da homofobia no Brasil. Não achei que seria a maneira mais efetiva de se construir uma escola sem bullying ou de fazer cidadãos mais conscientes e respeitadores das diferenças existentes nas sociedades, mas é uma tentativa de trazer à tona uma questão, até então, pouco falada. Uma tentativa.

Talvez fosse uma resposta aos desatinos do deputado Bosonaro, talvez um puxão de orelhas àqueles que fizeram coro com ele e talvez um alerta a outros jovens homofóbicos que covardemente agridem pessoas que andam, calmos, na Avenida Paulista. Será que o governo está dando um passo em direção à nossa constituição na qual se lê que todos os homens são iguais perante a lei? Indaguei-me, naquele momento, com ar de otimismo.

Infelizmente, poucos dias depois, leio nos jornais que a bancada dos evangélicos proibiu o governo de distribuir tais cartilhas com a ameaça de denunciar  irregularidades do ministro Palocci. E a presidência o que fez com seu poder e força? Impugna a distribuição das cartilhas, adiando mais uma vez, a discussão aberta das mazelas de nossa sociedade discriminadora.

Em nome de quem? De Deus, é claro. Em nome do bem, da tradição e da família.

Triste, muito triste a conclusão dada. Se a bancada do bem sabia de algo ruim do ministro, então porque não fala já que ele estaria prejudicando o povo ao fazer um enriquecimento, talvez, escuso. E o governo, já que não há o que esconder, porque não continuou com seu propósito de levar às minorias seu apreço de pátria cuidadora.

Onde está o bem? Onde está o mal? Uma profunda tristeza se abateu em mim.

Trouxe a reflexão para a minha área, psicologia, e pensei em quantas vezes nossos conhecimentos da realidade, são dicotômicos. Não é difícil ouvir, e até espantar-se, com colocações do tipo acima: o bem versus o mal. E claro, o interlocutor está sempre do lado do bem e raramente faz a mea culpa.

É muita sutileza. Bem e mal, poder e força, Deus.

Pensei no Paulinho, sua angústia em saber quem era do bem e quem era do mal. Realmente ele era um menino prodígio: havia descoberto aos três anos que a vida é muito mais complexa do que se apresentara. Bem e mal coexistem, coabitam, e necessitam estar juntos. Seria necessário que pudéssemos ter a humildade de saber que somos seres passíveis de erros e temos nossas deficiências: medos, fragilidades, invejas, egoísmos. Como todo animal, ao nos sentirmos ameaçados, atacamos na melhor forma de poder e força.

Nunca havia pensado que  Paulinho tivesse me ajudado tanto, desde muito novo, a entender que o bem e o mal não têm cara definida. Que tudo é relativo.

Obrigada Paulo.